
Título do Leicester é um feito histórico
É preciso admitir: por motivos que podemos discutir outro dia, volta e meia o jornalismo esportivo abusa de termos como “épico”, “histórico” ou “incrível” para adjetivar feitos que, se não são corriqueiros, vão só um pouco além do habitual. Um jogo contra um time medíocre da Bolívia ou do Peru logo vira “épico”, uma virada num modorrento campeonato estadual torna-se “histórica” ou “heroica”, e por aí vai…
Então, antes de continuar, é bom deixar claro que não acredito estar incorrendo nesse tipo de banalização ao classificar o título inglês conquistado agora pelo pequeno Leicester. Um time de uma cidade com 340 mil habitantes que, no início do campeonato, com o quarto elenco menos valioso do torneio — à frente apenas dos que vieram da segunda divisão —, era candidatíssimo a cair. Cujo artilheiro, hoje com 29 anos, aos 23 anos ainda jogava na 7ª divisão. E com um simpático técnico que, mesmo renomado, só agora, aos 64, vence seu primeiro campeonato nacional
Estes são apenas alguns entre os tantos ingredientes que fazem com que as palavras “histórico”, “épico” e “heroico” sejam adjetivos até modestos para classificar o que fez o Leicester na temporada 2015-16. Porque a conquista desta segunda-feira foi — e agora vai parecer exagero — o maior feito da história do futebol mundial.
Justifico a seguir. Porque o título do Leicester, entre as raras histórias similares ocorridas em toda a história, é a única a ter em comum os três pontos abaixo.

1) Foi nos pontos corridos
Esqueça a discussão sobre a “melhor” fórmula de disputa. Existe uma premissa que nem sequer gera debate: a de que, diante da imprevisibilidade do mata-mata, as chances do mais fraco, do azarão, do time menos técnico e menos rico tornam-se bem maiores do que numa disputa por pontos corridos, onde a regularidade (neste caso durante 38 rodadas) é fator determinante para que se chegue ao troféu. Portanto, se você pensou na Grécia campeã da Euro 2004 ou em qualquer outra bizarrice do gênero para “rivalizar” com a conquista do Leicester, já está explicado o descarte feito nesta comparação.

2) É o triunfo de um favorito ao rebaixamento.
Ok, se a gente fuçar a história dos campeonatos por pontos corridos pelo planeta certamente acharemos muitas conquistas de times que não eram apontados como favoritos ao título. Isso é uma coisa. Outra coisa, bem diferente, será encontrar, entre estes campeões, aqueles que eram apontados como favoritos ao rebaixamento no início da temporada. Times cuja chance de ser campeão fossem iguais as de, como mostravam as apostas no caso do Leicester, alguém provar que Elvis Presley está vivo ou que o monstro do lago Ness existe e está à espera de um turista mais atento para sair em sua próxima selfie.

3) Ocorreu contra gigantes milionários donos de seleções mundiais.
Não sabemos, mas podemos até admitir que num campeonato do Congo, da Armênia, da Finlândia ou do Paquistão (será que por pontos corridos?) um time inicialmente favorito ao rebaixamento tenha conquistado o título. Pode ser. Agora, ainda que isso tenha ocorrido, o nivelamento (por baixo) e a (pouca) qualidade dos adversários terá colaborado para a surpresa. Ou alguém acha que em algumas destas ligas o azarão da vez terá superado os bilhões de chelseas, cities e uniteds e derrotado nomes como rooneys, mourinhos e agueros? A força dos rivais é um dos principais pontos a engrandecer o feito do Leicester.
Mesmo considerando os três quesitos acima, não deixa de ser tentador comparar a conquista do time de Claudio Ranieri com outros campeões épicos (de verdade), certo? Então vamos lá.

Derby County
(Inglaterra, 1972)
Embora tenha subido à primeira divisão em 1969, o surpreendente time de Brian Clough ficou na parte de cima da tabela, especificamente no 9º lugar, na temporada anterior à conquista. Portanto, embora não fosse um “candidato ao título” em 1972, também não era nem de longe favorito a cair — como foi o Leicester nesta temporada.

Nothingam Forest
(Inglaterra, 1978)
Outro time de Clough, talvez seja o maior rival ao feito do Leicester. Não pelo posterior bicampeonato europeu (no mata-mata), mas por ter sido o título de um time vindo da segunda divisão e, portanto, também candidato a cair. A diferença: numa época em que a Inglaterra não contava com a grana de bilionários estrangeiros e na qual as ligas nacionais praticamente não tinham jogadores de outros países, o time não combatia contra quatro ou cinco seleções intercontinentais como fez a equipe de Ranieri.

Verona (Itália, 1985)
Já neste caso o poderio dos rivais até pode ser comparado: naquele ano, cada time italiano passou a poder contar com dois jogadores estrangeiros e por isso, para chegar à incrível conquista, o modesto Verona superou nada menos que o Napoli de Maradona, a Juventus de Platini, a Roma de Falcão, a Udinese de Zico… O Verona, porém, não era um candidato ao rebaixamento como o Leicester: no ano anterior tinha sido o 6º colocado e, uma temporada antes, chegara a obter uma vaga na Copa da Uefa.

Blackburn (Inglaterra, 1995)
Os Rovers tiveram forte investimento na época e vinham ensaiando a conquista do título há dois anos”. O efeito surpresa, dessa forma, não se compara com o que aconteceu neste ano na Inglaterra.

Kaiserslautern
(Alemanha, 1998)
Assim como o caso do Forest, o time chegara da 2ª divisão, era candidato a cair e foi campeão. Também aqui, porém, o nível dos rivais não pode ser comparado com os times milionários que o Leicester pegou. Além disso, o Kaiserslautern é um time tradicional e que já havia conquistado o título nacional três vezes antes de 1998.
Convencido? Chegue-se ou não à conclusão de que o feito do Leicester nesta temporada foi o mais incrível e inesperado da história do futebol mundial, uma coisa é certeza: os termos “histórico, épico e heroico”, neste caso, podem ser usados sem moderação.