
Leicester superou um abismo financeiro
O sucesso não se construiu do nada. O título do Leicester na Premier League reflete um projeto desenvolvido há seis anos. Investimento e planejamento que deram resultado em pouco tempo, por uma soma de fatores que também fogem a eles. E, por isso mesmo, a conquista se faz tão surpreendente. O que se almejava para o longo prazo extrapolou todas as expectativas logo no médio. Embora, independente disso, não tenha reduzido abismos. O fortalecimento das Raposas não as igualou às potências econômicas da Inglaterra, ainda que no âmbito esportivo as tenha superado. Agora, o projeto é ter consciência sobre o tamanho das pernas para seguir subindo degraus sustentavelmente.
A história do Leicester começa a mudar em agosto de 2010, quando os atuais donos chegam à cidade. A empresa King Power e a família tailandesa Srivaddhanapraba desembolsaram £39 milhões para comprar o clube, que havia vencido a terceira divisão inglesa no ano anterior. A partir de então, passaram a desenvolver um planejamento que visava colocar as Raposas na elite o mais breve possível. Para os padrões da Championship, o investimento era grande. Mas a ideia girava em torno justamente de ter prejuízos para conquistar o acesso rapidamente e logo contrabalancear as perdas com o reforço econômico que a Premier League traria. Algo que pode soar simples na teoria, mas que não funciona tão bem na prática. Sucesso esportivo não depende apenas só do dinheiro, como os azuis tanto sabem.
A potência da Championship
O Leicester precisou de quatro temporadas até cumprir o primeiro objetivo de seus donos. Sempre se manteve na parte superior da tabela da Championship, mas sucumbindo nos momentos finais. O maior lamento veio em 2012/13, quando o gol do Watford aos 52 do segundo tempo, em contra-ataque proporcionado por um pênalti perdido, eliminou as Raposas nos playoffs de acesso. O bilhete azul de volta à primeira divisão veio apenas no ano seguinte, com uma campanha segura que também rendeu o título da segundona, com ampla vantagem sobre os concorrentes.
O objetivo cumprido, contudo, custou bastante aos cofres do Leicester. Afinal, um clube que havia entrado em concordata 12 anos antes sobrava como força econômica no segundo nível do futebol mais rico do mundo. Os tailandeses desembolsaram cerca de £100 milhões no período, através de empréstimos, patrocínios e da compra do estádio – rebatizado em 2011. O ambicioso plano dos dirigentes era gastar £180 para colocar a equipe entre os primeiros colocados da Premier League até 2017. Soava loucura, até o trabalho de Claudio Ranieri surtir efeito muito antes disso.

Não à toa, o Leicester operou no vermelho em oito temporadas consecutivas até o retorno à primeira divisão, em 2014/15. Nos quatro primeiros anos sob as ordens dos tailandeses, as perdas a cada temporada foram de ao menos £15 milhões. Em 2012/13, bateram a casa dos £34 milhões. Enquanto isso, as Raposas apresentavam um padrão alto para a Championship. Não à toa, no ano do acesso, a folha de pagamentos era a segunda mais alta da competição, atrás apenas do Queens Park Rangers, recém-rebaixado. Naquele momento, o clube distribuía £36 milhões entre seus atletas, mais que o dobro do vice-campeão, Burnley.
Assim, o conto de fadas que se deu na Premier League surgiu como a construção de um império na Championship. A ponto do Leicester ser investigado por violar o Fair Play Financeiro em 2013/14, primeiro ano no qual a segunda divisão inglesa foi submetida à regulamentação. Os ganhos comerciais do clube saltaram de £5,2 milhões para £16,1 milhões naquele ano, graças à parceria com uma empresa chamada Trestellar Limited. Entretanto, a pequena e desconhecida companhia encravada em um distrito industrial de Sheffield levanta suspeitas.
O montante acrescido evitou qualquer embargo nas transferências ou multa por violar as regras. Embora tenha apresentado prejuízos de £20,8 milhões, £12 milhões acima do permitido, o Leicester enquadrou os excessos em gastos permitidos pela liga – como pagamento de bônus e investimentos em categorias de base. Não fosse a Trestellar, as contas não se enquadrariam. Segundo o clube, não há nada de errado com a parceria e “o acordo permite explorar comercialmente o tradicional mercado do Reino Unido e o ainda mais excitante Extremo Oriente, de onde vem os donos do clube”.
A Trestellar funciona em uma propriedade pertencente aos filhos de Sir Dave Richards, ex-presidente da Premier League e com ligações próximas aos dirigentes tailandeses. A empresa não possui site oficial ou número de telefone, assim como não há nenhuma identificação em sua sede.Em questionamento levantado pelo jornal Guardian, nem o clube ou a companhia responderam o porquê de a King Power permanecer como patrocinadora máster. Enquanto isso, a Football League afirma que segue investigando o caso e dirigentes de outros clubes da Championship acusam o Leicester de “doping financeiro”.

Caso o Leicester seja realmente declarado culpado, a principal implicação seria o pagamento de uma multa – o que, hoje, não seria problema, diante dos ganhos multiplicados a partir da presença na Premier League. E, de qualquer forma, ainda que a possível fraude tenha acelerado o acesso na Championship, não diz muito sobre a realidade na Premier League. De uma força entre os pequenos, o Leicester se tornou um pequeno entre gigantes na primeira divisão. A Trestellar significa pouco diante dos bilhões na elite do futebol inglês. Ainda mais pela maneira como, esportivamente, as Raposas conseguiram saltar todas essas montanhas de dinheiro.
Os pequeninos na Premier League
Disputar a Premier League significou uma transformação nas finanças do Leicester. Dos £20,8 milhões de prejuízo na campanha do acesso à Championship, o clube registrou lucro de £26 milhões em sua primeira temporada na elite, mesmo brigando para não cair. E aumentando consideravelmente os seus gastos. As Raposas passaram a desembolsar 52,6% a mais em salários e outras despesas. Enquanto isso, os ganhos totais saltaram em 235% – e muito por conta dos direitos de TV, que se multiplicaram por 13, indo de £5,6 milhões para £73,7 milhões. Assim, ficou mais fácil lidar com os prejuízos anteriores e arredondar o elenco ao menos para permanecer na primeira divisão.

Obviamente, os acordos comerciais e os ganhos com estádio em dias de jogo também cresceram na Premier League, mas nem de longe acompanharam o impacto da TV para as finanças. Em 2013/14, o dinheiro das transmissões representava 18% nas receitas totais do Leicester. Um ano depois, passou a ser responsável por 71% das receitas. Não à toa, as Raposas apareceram pela primeira vez no Deloitte Football Money League de 2015, o principal levantamento do gênero. O clube figurou na 24ª posição (o que significa que possui a 24ª maior receita do futebol mundial), muito graças à força econômica dos ingleses. Entretanto, no plano doméstico, outras 11 equipes apareceram à frente, enquanto outras cinco seguiam logo atrás na lista.
O aumento exorbitante das receitas permitiu ao Leicester diminuir as dívidas contraídas, com débitos despencando de £118 milhões para £27 milhões entre 2013 e 2014 – também graças ao processo de transformar os empréstimos adquiridos junto aos donos em capital próprio. Ao mesmo tempo, o investimento no departamento de futebol cresceu. A folha salarial subiu para £57,4 milhões após o acesso, um aumento de 58%. Já o montante usado para transferências nas duas últimas temporadas atingiu os £55 milhões, contra £13 milhões nos quatro anos sob as ordens dos tailandeses na Championship – uma quantia alta para a Premier League, considerando que as Raposas preferiram manter seus principais jogadores e mantiveram o balanço de mercado negativo, com poucas vendas.

E os dirigentes puderam fazer um afago aos torcedores, congelando o valor dos carnês de temporada desde 2013/14. O retorno à Premier League marcou um aumento de 26% (6,7 mil espectadores) na média de público e de 52% (£3,7 milhões) no dinheiro angariado em serviços prestados no estádio – também por conta nos aumentos do valor dos ingressos individuais, ainda assim os mais baratos da primeira divisão, e da maior venda de produtos. Já nesta temporada, a média de público também subiu ligeiramente. De qualquer forma, apesar do maior apelo com o título, ganhar mais dinheiro com os carnês de temporada resultaria em um impacto pequeno nas receitas totais, até pelas novas fontes de renda que o sucesso das Raposas gerou. Com o bônus da TV pela conquista, os prêmios pela participação na Champions e a abertura para acordos comerciais, onerar o torcedor seria criar insatisfação à toa.
Só que, a despeito da ascensão econômica, o Leicester permanece muito atrás no campo financeiro dos costumeiros favoritos ao título. E isso ajuda a tornar sua conquista ainda mais fascinante. A folha salarial era a 18ª menor em 2014/15, equivalente a um quarto do que desembolsava o Chelsea e abaixo da metade dos cinco cubes mais ricos da Premier League. E isso sem pesar no total de receitas do clube, representando apenas 55% do volume total de negócios – mais apenas que Manchester United e Hull City.

Enquanto isso, as outras fontes de dinheiro também permanecem incomparáveis. Os acordos comerciais rendem £20 milhões por ano, quase um terço recebido pelo Tottenham e um oitavo do United, e a 11ª da liga no geral. As receitas em dias de jogo não passam de £11 milhões em um ano, menos do que outros 13 clubes em 2014/15, incluindo até mesmo alguns ameaçados pelo rebaixamento, como Sunderland e Newcastle.
Mesmo assim, o Leicester produziu o segundo maior lucro da primeira divisão entre os 14 times que divulgaram os seus balanços em relação à última temporada, atrás apenas do Liverpool. Sinal de quem, mesmo abaixo do potencial financeiros dos concorrentes, não se desesperou a fazer loucuras para ser competitivo e se manter na elite – como, por exemplo, o Aston Villa, que perdeu £54 milhões em relação às Raposas em 2014/15 e terminou rebaixado.
O trunfo do Leicester, aliás, é bem mais difícil de se expressar em balancetes. Passa pela competência na montagem do elenco, especialmente na observação de jogadores como Jamie Vardy, Riyad Mahrez e N’Golo Kanté. E, por mais que o dinheiro tenha sido parte importante na formação do time, investido representa pouco do potencial real que o grupo demonstrou dentro de campo. Diante da excelente campanha, o valor estimado dos jogadores quadruplicou. Dos £57 milhões avaliados no início da temporada, se alavancou para £200 milhões, segundo o agente de Vardy e Mahrez.

Tão grande quanto o desafio de chegar ao topo será a missão do Leicester em se manter por lá e lidar com as transformações. O elenco “modesto” mostrou a sua capacidade para dar ao clube o título da Premier League, mas o buraco em 2016/17 será um pouco mais embaixo, com o calendário inchado também pela Liga dos Campeões. Além disso, as Raposas terão que encarar o assédio em torno de seus principais nomes e saber avaliar até que ponto valerá a pena segurá-los ou receber o dinheiro das transferências, inflado pela repercussão da façanha.
Mesmo incrementando as receitas na Champions e com os prêmios da TV, o Leicester não está no nível de competir financeiramente com as potências do Campeonato Inglês. Para almejar a elite de maneira perene, precisa manter o controle de suas contas e ter consciência que o desempenho esportivo espetacular de 2015/16 pode não se repetir. Entretanto, inteligência no trato com o dinheiro é algo que a atual diretoria das Raposas já demonstrou. Tanto para encurtar distâncias quanto para atropelá-las.