Para onde caminha o futebol

A cada 20 anos o futebol se transforma, ganha novos contornos dentro e fora dos gramados, seja táticos, técnicos, psicológicos, contornos que renovam o esporte, trazem para dentro de campo “fatos novos” (que muitas vezes estão fora das quatro linhas). Na verdade, este não é um fenômeno restrito ao futebol, mas à sociedade como um todo e, como o esporte “bretão” não é um “ilha”, isso o afeta. O futebol é um fenômeno social, mais do que isso: é uma metáfora da própria vida, reproduz dilemas humanos ancestrais nos 90 minutos de cada partida, diante de nosso olhos e, muitas vezes, nem nos damos conta. Como na sociedade, muitos “conservadores” torcem o nariz para modernidades só por serem modernidades, outros conservadores torcem o nariz para novas práticas com a convicção de que elas são prejudiciais ao bom andamento do esporte (ou da sociedade); assim como há aqueles “moderninhos” que gostam das mudanças só porque elas mudam alguma coisa e, outros, gostam porque entendem que estas ajudam a melhorar o esporte.

De lado a lado, sem dúvida, há posicionamentos mais racionais e outros menos racionais. Acontece que o esporte em geral toca no ser humano mais em sua paixão que em sua razão, mas aprecia melhor o esporte quem consegue ser consumido pela paixão nos 90 minutos mais acréscimos do jogo e racionaliza tudo fora desse período de tempo infinito que dura uma partida de futebol. Se o futebol é uma arte e a arte precisa ser apreciada não somente com o “gosto” mas, também, com um conhecimento técnico, o que faz com que o apreciador tenha mais prazer em apreciar seu objeto de apreciação, esta é a diferença dos apreciadores do futebol para os apreciadores das demais artes: o jogo de futebol é uma obra de arte em andamento, ela só está terminada quando o árbitro finaliza a partida, então você vê os artistas tecendo a arte ao longo de 90 minutos e aprecia a sua feitura, depois “perde tempo” analisando racionalmente o que aconteceu nesse período de tempo, mas a matéria a ser analisada depois é a memória do jogo (mesmo que você assista dez vezes o jogo completo) e não o próprio jogo, que só existe completamente enquanto sucessão de eventos ocorridos, mas cada lance, cada momento e movimento, também pode ser considerado uma obra de arte a parte do restante.

É por isso que o futebol é o esporte mais visto, apreciado e jogado no mundo. É por isso que envolve bilhões de “dinheiros” e mobiliza milhões (ou seriam bilhões) de pessoas ao redor do mundo. É por isso que a copa do mundo de futebol é o evento mais importante do planeta. De alguma forma o futebol integra o mundo a cada quatro anos e, no período anterior à copa, ele está se preparando, evoluindo, agregando novos elementos para integrar o planeta que é uma bolinha azul de futebol.
“Futebol moderno” versus “futebol antigo” ou “românticos” versus “realistas” – o problema da memória

Há, na arte, duas “escolas artísticas” (chatérrimas, que estudamos nas aulas de literatura) antagônicas que podem nos fazer entender duas visões de mundo que os amantes do futebol possuem. Essas visões às vezes opõem indivíduos distintos (João é “romântico” e Pedro é “realista” – João e Pedro são personagens fictícios), mas, outras vezes, são opostas no mesmo indivíduo (Simão – outro personagem fictício – é ora “realista” e ora “romântico”). Pois bem, os românticos são aqueles que apreciam o futebol antigo ou um futebol idealizado, onde apenas aquele jogo ofensivo, bonito e cheio de “firulas” serve, são os amantes do “dibre” e de jogadores com atitudes não tão “exemplares” fora do campo, mas que dentro do gramado faziam a alegria dos amantes do futebol.

Ronaldinho Gaúcho: um dos grandes símbolos do romantismo.
Ronaldinho Gaúcho: um dos grandes símbolos do romantismo.

Românticos mudam tudo para não mudar nada e realistas não mudam nada para mudar tudo. A relação entre as “escolas”, a romântica e a realista, com a mudança, ou seja, a forma como respondem à pergunta: “o que deve ser mudado?”, é que diferencia e torna cada uma delas algo único, singular: a relação de cada uma delas com a mudança é capaz de tudo mudar.

Românticos mudam tudo aquilo que não afeta exatamente o seu modo de conceber o jogo, assim sendo, buscam agregar novos elementos, inventam formas diferentes para adaptar o seu modo ideal de jogo com a forma necessária para conseguir os resultados que esperam. Exemplo: para que um time possa marcar pressão por mais tempo, adiantando as linhas, provavelmente precisaria de um preparo físico melhor e maior, assim sendo, pode-se agregar elementos da fisiologia do esporte no sentido de tratar cada jogador especificamente para a sua própria função e suas necessidades dentro de campo, adotando uma preparação específica no sentido de fazer com que aquele indivíduo contribua mais e melhor com o todo.

Realistas, por sua vez, mudam tudo o que é possível, mas não costumam agregar novos valores, inventar novas possibilidades, eles simplesmente aproveitam e aperfeiçoam o que os românticos agregaram.

Por outro lado, também podemos dizer que o romantismo e o realismo existe fora dos gramados, ou seja, fora do jogo jogado. O romantismo e o realismo existe nas arquibancadas, no modo de dirigir o clube, no modo de entender e responder às perguntas: “o que é o futebol?” e “como tratar o futebol?”.

Românticos tratam o futebol da mesma forma que tratam a idealização da mulher amada, como algo intocável e inegociável, são avessos ao “marketing” e à vida prática de que jogadores jogam (também) por dinheiro! Realistas entendem o futebol como ele é e, assim sendo, entendem que gerando dinheiro e tornando o futebol um negócio (um espetáculo, como outro qualquer, como um show de sua banda favorita ou ir ao cinema) podem melhorar exponencialmente o seu desempenho dentro de campo. As receitas e os caminhos realistas, fora do campo, são diferentes, mas sempre com vistas a potencializar uma relação real de custo e benefício do ponto de vista de dinheiro versus títulos. Dois bons exemplos de dois caminhos realistas é a dupla dos maiores da Espanha: Real Madrid e Barcelona. Enquanto, por um lado, o Real aposta alto em suas estrelas, potencializando a exploração da imagem desses jogadores para pagar o investimento feito e ganhar seus títulos usando o talento dos mesmos, o Barcelona busca minimizar seus custos de contratar formando os melhores jogadores em suas “canteras”, a “magia” de “La Masia”, retirando de lá ótimos jogadores, os catalães gastam menos contratando e aumentam, também, o potencial de imagem de seus craques, mais identificados com o clube.

Real Madrid e Barcelona podem até trabalhar de maneira diferente, mas querem , ao final, chegar no mesmo lugar.
Real Madrid e Barcelona podem até trabalhar de maneira diferente, mas querem , ao final, chegar no mesmo lugar.

São duas receitas diferentes, que, sob pontos de vistas distintos, findam por potencializar as receitas, por um lado, e os títulos, por outro, basta ver como ambos os clubes agregaram copas às suas estantes nesses últimos anos. O realismo de fora do campo, alimenta o romantismo dentro dele. Enquanto um treinador busca saídas e soluções que apoiem seus sonhos românticos, é necessário muito suor e ideias realistas que consigam tornar cada sonho algo real. Afinal, um sonho que não se realiza é só imaginário. Já um sonho realizado, um projeto executado exatamente conforme o planejado, é, aí sim, romântico

E isso expressa também a mudança da relação de força dos times de futebol das Américas para os europeus. Enquanto nas Américas não entendemos ainda os processos novos de tornar sonhos em realidade, são os europeus que encontraram novos processos de realidade para realizar seus sonhos e com isso, inclusive, “roubam” nossos principais craques, nosso protagonismo no mundo do futebol de seleções e fazem de nós, nossos clubes e nossas gestões, algo mais ultrapassado que um Fiat 147 perto de uma Ferrari novinha em folha.

Nossos clubes vivem sonhando, olhando para as estrelas, sem olhar para o chão, não percebem que existe um poço e invariavelmente caem no poço sempre. Antes de desvendar o mistério do universo, é necessário verificar se nossos pés estão fincados no chão com segurança, sem poços em nosso caminho. Isso, também, não significa que a equação europeia deve ser copiada, pode-se criar novos modelos, o romantismo está aí para isso, o que não se pode é esquecer que a realidade existe e que as contas chegam no final do mês.

É assim que o futebol evolui, pode-se achar ruim o modo como ele evolui, porém, se não se faz nada para tornar reais os sonhos, ele irá engolir, um por um, todos os que ficarem apontando o dedo para as estrelas sem ter os pés firmes no chão.

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